sábado, 3 de julho de 2010

OS MISTÉRIOS DA INICIAÇÃO - VIDA, MORTE E RENASCIMENTO.



Toda cerimônia de iniciação dramatiza transformações profundas na vida do ser humano, assinalando sua morte simbólica para a antiga vida e fazendo-o renascer para um novo estágio da alma.


Paulo Urban
(Psicoterapeuta junguiano e médico psiquiatra)


Mistério é palavra grega mystérion e significa “o que é secreto”. Provém do verbo myéin, usado quando devemos “calar a boca”. Daí que mystes se refere a tudo aquilo que se fecha; é o iniciado que, calado, conhece e guarda.
Mesma raiz têm os termos mystikós “a designar o místico, aquele que penetra nos segredos” e myesis “referente aos ritos mediante aos quais a sabedoria é preservada”.
A tradução latina: myéin = initiare; myesis = initiato; em português: “iniciar” e “iniciação”. Como diz o nome, iniciação é a senda de todo aquele que deseja retirar-se da vida profana para iniciar-se no saber sagrado.
Os mistérios, antes de tudo, constituem um caminho de renascimento, regrados pelo secreto sentido da vida. Acha-se implícito aqui o tema da morte simbólica, principal etapa a ser vencida por todo candidato que se proponha a renascer na luz espiritual.
Observe-se o caminho de Cristo até o Calvário, onde sofre sua transformação final, que é a de experimentar a morte na cruz como passagem para a ressurreição. Não é à toa que a Igreja intitula esse processo de mistério doloroso, compondo, ao lado dos mistérios gozoso e glorioso, a trilogia crística, como se fossem três graus necessários a cumprir a grande iniciação comandada por Deus-Pai, que sacrifica seu próprio Filho em favor da iluminação da humanidade. Jesus conhece, assim, o último segredo, e passa a deter consigo parte do grande mistério, transcendendo o conceito morte/vida.
Iniciações são processos paradoxais: se, por um lado, visam à ampliação da consciência através de vivências únicas que trazem o aprimoramento pessoal, por outro, nos incitam a romper os limites dessa mesma consciência, fazendo nascer em cada neófito a vontade inata de saltar no desconhecido universo de si mesmo.
A iniciação, em seu sentido pleno, faz morrer; o aprendiz deve entregar-se à morte, para que saia renascido pela saída/entrada que o leva a outra dimensão. A morte iniciática nos promove à rara condição de espectadores do mistério. Intuitivamente, todo iniciando sabe que para renascer deverá primeiro regressar ao seio da terra, e encontrar em suas entranhas o útero de onde poderá ser novamente parido. Simbolicamente deve, portanto, voltar ao estado predecessor da vida, à sua imensa escuridão particular. Só por meio do contato com a noite que trazemos em nossas próprias cavernas é que compreenderemos, por contraste, o paradoxo de estarmos morrendo e renascendo a cada instante. Sem essa visão profunda, nenhum ser se completa e passa pela vida em brancas nuvens, somente sob a luz do dia. É necessário, pois, que busquemos o mundo subterrâneo que nos suporta.
A mitologia universal, sedimento milenar das experiências vitais sofridas pela espécie humana, traz entre seus mistérios radicais o binômio morte/vida e elege a Mãe-Terra, uma de suas principais deusas, para guardá-lo. Em nossos dias, a Deusa-Mãe da Ásia Menor, num latim correto, é chamada de Mater Magna; o nome provém do grego arcaico guê méter =Mãe-Terra.
Com as invasões dóricas ocorridas por volta de 1200a.C., tornou-se comum por toda a Grécia, incluindo sua extensão asiática, o uso do termo dórico equivalente a designá-la: dé méter. Na maior cidade-templo grega, Éfeso, na Ásia Menor, a Grande-Mãe era a deusa silvestre Ártemis, com inúmeros seios, assimilada como Diana pelos romanos. Na Frígia, Deméter era Matar Kybeléia, ou Cibele, conforme ficou conhecida entre os romanos, e habitava as montanhas.
Historicamente, o culto da Mãe-Terra remonta-se à época anterior à escrita, seguramente até o neolítico, cerca de 4500a.C.; e podemos observar sua ocorrência como deusa principal da fertilidade em todas as civilizações mais antigas. Ela é Gaia, Réia ou Deméter entre os gregos; Ísis entre os egípcios; Ishtar entre assírios-babilônios; Astarte entre os fenícios; e Pachamama para os incas. Entre os hindus, assume o arquétipo terrível da deusa Kali, ou a mãe canibal, deusa negra de aspecto hediondo, que nos mostra sua língua ensangüentada enquanto dança sobre cadáveres, assumindo a personificação do tempo que tudo devora. A propósito, não nos esqueçamos, durante 600 mil anos de experiência humana, as mães-ogras canibais já foram realidade presente em inúmeras culturas espalhadas pelo mundo. O fato concreto gerou diversas referências míticas. Todos conhecemos, por exemplo, o conto da gentil velhinha, na verdade uma bruxa malvada, que convida crianças a entrar em sua casinha de chocolate com o intuito de prendê-las e fazê-las engordar até que lhe sirvam como boa refeição.
Como é possível, porém, que a Mãe Divina seja assim, em alguns casos, hedionda e mortal? Ora, encontramos no simbolismo da mãe a mesma ambivalência da terra, que nos oferece todas as chances de vida, da mesma forma que recolhe todos os cadáveres. Se nascer é sair do ventre materno, morrer é retornar à terra. Para melhor assimilarmos o conceito, façamos uma síntese do mito de Deméter e Perséfone, sua filha, deusas às quais foram consagrados os mistérios de Elêusis, profundo drama iniciático que celebra o ciclo da vida, da morte e do renascimento, nos ensina a brevidade da existência e indica um caminho secreto de espiritualidade.
Elêusis em grego significa “advento”, “vinda”, ou “encontro”. Trata-se de uma região situada a 22km de Atenas. Seu culto, repetido a cada cinco anos, data desde as origens da cidade (séc. 16a.C.), conforme revelaram recentes escavações. Com o pacto de união política entre Elêusis e Atenas, ocorrido no séc. 7a.C., os mistérios encontraram seu apogeu, até serem proibidos, após dois mil anos de prática, por decreto de Teodósio I, o Grande (séc. 4d.C.), que, convertido ao cristianismo, mandou destruir a picareta todos os templos pagãos do império romano.
A repetição desse rito atualizava e perpetuava o mito da Mãe-Terra. Perséfone, filha única de Deméter, saíra pelos campos num dia ensolarado a colher flores. Encantada com um narciso plantado maliciosamente por Zeus à beira de um precipício, ao abaixar-se para apanhar a flor, deu-se conta, apavorada, de que o chão abria sob seus pés. Lançada no abismo, gritando enquanto caía, viu-se violentamente apanhada pelos braços de Hades, soberano dos mortos, habitante das entranhas da Terra, que levou consigo a jovem para servir-lhe de esposa em seu mundo.
Deméter, em cuja alma ressoara magicamente o grito dado pela filha, saiu a seu encalço. Por nove dias, com a cabeça enlutada por um véu negro, vagou por toda a Grécia à sua procura ou de quem tivesse notícias. Nem Hécate, a Lua, que tudo vigiava, sabia dizer onde estava Perséfone, embora confirmasse ter ouvido seu grito. Hélio, o Sol, única testemunha do fato, notando o desespero de Deméter, resolveu contar-lhe o que sabia, apontando-lhe o raptor e seu cúmplice.
Deméter se desesperou mais ainda: impossível resgatá-la naquele mundo interdito. Irritada com Zeus e Hades, recolheu-se entristecida em Elêusis, renunciou ao Olimpo e resolveu deixar de gerar sementes até que lhe devolvessem a filha. Zeus, então, é que passou a se preocupar. O fim das sementes é o fim da Terra e de toda a humanidade; por conseguinte, o fim dos deuses, que dependem exclusivamente de nossos tributos para que continuem reinando. Antes que todos morressem e tudo acabasse, Zeus resolveu enviar Hermes, seu mensageiro, único autorizado a penetrar incólume no reino de seu irmão, Hades, para convencê-lo a devolver Perséfone. Mas já era meio tarde: a mocinha estava apaixonada! Havia tomado com gosto uma poção mágica de romã, preparada por Hades conforme receita de Zeus, e por nada desse mundo desejava voltar para os braços da mãe. Por questão de sobrevivência, a tétrade divina chegou finalmente a um acordo: por sugestão de Hades, orientado que fora por Zeus, Perséfone resolveu dizer à mãe que só regressaria se ela lhe permitisse viver ao lado de seu amado raptor pelo menos um quarto de cada ano, o que de pronto foi aceito por Deméter. Para nossa sorte, o pacto e o casamento estão firmados até hoje, mas Deméter, de certa forma conformada, ainda se ressente a cada período que passa longe da sua filha, quando notamos sua tristeza e sentimos seu inverno.
Perséfone revê sua mãe a cada ano no Elêusis, daí ser esse o local do “encontro”, “do advento”, quando renasce a primavera e Deméter se rejubila.
Os mistérios diziam respeito a isso, ao milagre da vida. Deles poderia tomar parte qualquer cidadão sem crimes e que soubesse falar o grego fluentemente. Isso porque certas passagens exigiam a repetição de ladainhas e nomes secretos que deviam ser pronunciados corretamente. Era uma festa democrática, permitindo que homens ou mulheres, livres ou escravos, fossem iniciados sem ter de abandonar seus compromissos com a família ou a cidade. Dividiam-se em pequenos e grandes mistérios, sendo estes últimos alcançados somente por rara parcela dos iniciados.
Os pequenos mistérios eram ministrados aos postulantes, em Atenas, pelos mistagogos (do grego, mysta + gogós = “condutores dos iniciados”). Estes ensinavam-lhes certas posturas e frases, cobravam-lhes o jejum em certas datas e davam-lhe missões como a de banhar-se no mar com um porco, que se diz koyrós em grego, mesmo nome da genitália feminina. Dali a seis meses ocorriam os grandes mistérios, quando os iniciados partiam em procissão barulhenta até Elêusis, onde passariam vários dias em provação. Chegavam sempre à noite, quando então dançavam e cantavam em honra às duas deusas. No dia seguinte ocorria o prelúdio, quando todos jejuavam, purificando-se para o grande encontro. No terceiro dia era conferido o 1o grau, subdividido em três etapas, chamado teleté, a significar “fecho”; era o sinal de que uma vida deveria dar lugar a outra.
Nessa fase da cerimônia, passava-se de mão em mão uma cesta, que em grego também se diz mystes, dentro da qual objetos sagrados eram velados, entre eles a uva e o trigo; à noite, encenava-se, à luz de tochas e por meio da mímica, o rapto de Perséfone. Os iniciados deveriam seguir o caminho de transformação apontado pela deusa e penetrar em suas trevas pessoais.
Aos aprovados, reservava-se o 2º grau, dito epoptéia ou “visão plena”, quando, levados aos recônditos do templo, os neófitos assistiam ao casamento sagrado (hierosgamós) realizado em carne ou por alegoria entre o sacerdote e a grande sacerdotisa, simbolizando a união de Zeus com Deméter, a garantir a fertilidade da terra para as próximas colheitas. Por meio de um ritual coletivo, cada aprendiz podia mergulhar individualmente em seus próprios abismos, a fim de descobrir verdades e deter intimamente seus segredos. Talvez por isso todos aqueles que, desde a Antigüidade, se referem a Elêusis deixem claro que seus mistérios nunca podem ser escritos, mas somente revelados por meio de sua iniciação. Pitágoras foi claro: “Nem tudo pode ser a todos revelado.”
No sentido iniciático, as psicoterapias que privilegiam o inconsciente cumprem semelhante função. Jung, por exemplo, chamou de individuação a esse processo psíquico natural voltado para o autoconhecimento, repleto de situações arquetípicas que devem ser vitalmente experimentadas. Estabeleçamos aqui uma analogia entre o mundo inconsciente e o reino de Hades. Sempre que buscamos sinceramente conhecer a sombra que trazemos em nosso psiquismo, apresentamo-nos à grande iniciação. Uma vez descortinado o véu entre o profano e o sagrado, deparamo-nos com o templo de nosso mundo interior, depositário de valores infinitos, agradáveis ou não, que devem ser plenamente assimilados. Nesse exercício, rompemos as amarras que nos prendem à condição mundana, e alçamos vôo a novos planos de consciência, sutis em relação ao antigo, onde vislumbramos um caleidoscópio de possibilidades. A iniciação tem mesmo seu sentido oculto. E ele jaz latente em nossa alma, que, feito lagarta, espera pacientemente pelo milagre natural da metamorfose.



Fonte: Revista Planeta - Edição 353.

2 comentários:

Joaquim FARIAS disse...

Texto elucidativo e inspirador sobre o tema mais importante para o místico e iniciado.

Neusa Rejane Zabiela disse...

A iniciação trás a morte do passado, a transição de um reinício.E, a consagração de uma nova vida. Um recomeço com a tonalidade de cores novas em nossos corpos astrais. Esta experiência é única. Quem fizer verá!!!